Não lhe chamo pai, porque para mim, pai é quem cria, quem está perto de nós nos bons e maus momentos, quem dá afecto, carinho, amor e quem sabe ralhar e dar umas palmadas quando o nosso comportamento não é o melhor. Para mim, pai não é aquele que fornece o espermatozóide, que mais tarde originará um ser humano, e que dá por terminado por aí o seu contributo para a vida do seu filho.
A minha mãe e o meu pai começaram a namorar quando a minha mãe veio morar para Portugal e foi estudar para a universidade onde o meu pai já estudava. A minha mãe era caloira, o meu pai estava no último ano e era um menino prodígio. Diz-se por aí que o meu pai era lindo, para além de ser uma pessoa muito inteligente e cativante e que a minha mãe continua a ser a caloira mais bonita que já passou por aquela universidade. Foram ambos alvo do cupido e por descuido, dessa paixão assolapada nasci eu. Entretanto, meu pai licenciou-se e a minha mãe continuava a estudar para terminar o curso. Casaram. Os primeiros anos correram às mil maravilhas. O meu pai tinha sucesso profissionalmente, destacava-se, como ainda se destaca na sua carreira, a minha mãe terminou o curso e começou a leccionar, como sempre tinha ambicionado.
Sinceramente, não me recordo de grande coisa desta época em conjunto, não sei se era por ser muito pequena, se por ter banido essas recordações da minha mente, ou se por o meu pai se dedicar mais à carreira que à família.
Cinco anos após o meu nascimento a minha mãe engravida novamente e ainda grávida da minha irmã decide divorciar-se do meu pai. Já não havia amor, a única ambição do meu pai era a construção sólida da sua carreira e não há relação que resulte se não houver entrega de ambas as partes.
Lembro-me de nos primeiros anos após o divórcio o meu pai se ter arrependido das escolhas que tinha feito e de se ter aproximado de mim e da minha irmã. Tentava desculpabilizar a sua anterior ausência oferecendo-nos prendas, fazendo-nos todas as vontades e cedendo a todos os nossos caprichos.
Entretanto a minha mãe começou a namorar (namoro que dura até hoje) e aí começaram a surgir os problemas. O meu pai não queria aceitar, não reagiu bem e afastou-se não só da minha mãe como também das duas filhas. De um momento para o outro deixou de mostrar interesse em mim e na minha irmã. Deixou de cumprir as suas funções como pai, deixou de cumprir com o que tinha sido legalmente acordado no acto do divórcio(sim, o meu pai deixou de contribuir com a mensalidade que o tribunal tinha acordado com ele... O meu pai nunca contribuiu para o meu sustento nem para o da minha irmã), usando como desculpa o facto de a minha mãe ter um namorado.
Não nego que foi difícil para nós, é sempre difícil para as crianças não ter a presença de um dos progenitores no seu processo de crescimento, mas o meu avô (esse sim o meu verdadeiro pai) e o namorado da minha mãe preencheram o seu lugar da melhor forma.
O período mais complicado foi, sem dúvida, o da fase do 1º Ciclo. A minha professora era extremamente católica e contra a lei do divórcio (dizia que um casamento abençoado por Deus tinha de ser eterno) e eu era alvo da sua descriminação, dizia-me coisas que para mim enquanto criança não faziam muito sentido, mas que hoje são fáceis de perceber. Para ela eu era filha do diabo, porque a minha mãe tinha engravidado sem estar casada e anos mais tarde se tinha divorciado. Não me deixava fazer prenda para o dia do pai, porque para ela eu não merecia porque os meus pais estavam separados e o meu pai não se interessava por mim. Se houvesse algum problema na sala de aula eu era sempre culpada, porque não tinha educação, porque faltava um homem em casa para me educar, a culpa era sempre da "filha da divorciada". Fazia e dizia muitas outras barbaridades que eu calava e guardava para mim e não contava à minha mãe para não a magoar. Um dia, o meu namorado (que na altura era só meu amigo e colega de turma) contou à mãe dele um desses comportamentos da minha professora e a mãe dele em conversa com a minha mãe acabou por lhe transmitir o que ele lhe tinha dito. A minha mãe foi à escola, falou com a minha professora e ela negou tudo, disse que nós, as crianças, tínhamos uma imaginação maléfica... Mas deve ter-se sentido ameaçada porque o seu comportamento em relação a mim suavizou.
Se eu sentia falta do meu pai? Sim, nessa fase sentia, muita. Principalmente quando via os pais dos meus amigos participarem nas suas festas da escola e aniversário, quando os via ir buscar os filhos à escola e às actividades em que estávamos inscritos... Mas eu tinha o meu avô, ele fazia isso tudo e muito mais comigo e com a minha irmã. Éramos e ainda somos as suas meninas.
Fui crescendo e percebendo que o facto de o meu pai não estar presente na minha vida não era assim tão mau. Quando comecei a sair à noite, via todas as minhas amigas queixarem-se do facto de os pais não as deixarem sair até tarde, enquanto a minha mãe sempre me deu "carta branca", via os pais delas proibi-las de fazer certas e determinadas coisas e pensava "Ainda bem que o meu pai não está nem aí para o que eu faço ou deixo de fazer". A minha mãe sempre me deixou crescer em liberdade, aprender com os meus próprios erros e experiências, tenho a certeza que se o meu pai estivesse por perto não teria nem metade dessa liberdade.
Hoje, não me lembro da última vez que falei pessoalmente com o meu pai, mas já foi há mais de 10 anos. Se tenho saudades dele? Não, não se pode ter saudades de uma pessoa que não se conhece.
O meu pai não esteve presente nos grandes momentos da minha vida. Não esteve ao meu lado quando eu soube em que universidade tinha entrado, não esteve na minha festa de 18 anos, não foi à minha queima, não esteve presente na minha defesa pública da dissertação de mestrado, não viu o pedido de casamento que o meu namorado me fez, não viu como eu fiquei feliz quando consegui arranjar o meu primeiro emprego... Mas, sinceramente, acho que a presença dele não ia tornar esses momentos mais felizes e a sua falta não foi sentida.
Há uns anos atrás tentou voltar a aproximar-se de mim e da minha irmã, mas nem eu nem ela estávamos receptivas ao papel que ele queria desempenhar na nossa vida, não conseguíamos olhar para ele como um pai... Não podia chegar e querer apoderar-se desse estatuto e de todas as funções que lhe são inerentes (a minha mãe nunca me deu ordens e esteve sempre ao meu lado, ele que nunca se preocupou nem esteve presente não tinha o direito de nos tentar obrigar a fazer nada, de controlar e comandar a nossa vida, só porque se lembrou de um momento para o outro que tinha duas filhas). As coisas não correram bem e ele voltou a afastar-se. Lembro-me de a minha mãe, o meu avô e o meu namorado me terem dito para lhe dar uma oportunidade, mas o meu orgulho não deixou e além disso, como pai não tinha espaço na minha vida.
Sinceramente, espero que ele seja feliz com a escolha que fez há muitos anos atrás, espero que não se arrependa de ter dado mais valor à sua carreira que à sua família. Porque caso esteja arrependido vai ter de viver com o remorso de não ter visto as suas filhas crescer e não ter participado nesse crescimento.
Quando na televisão ouço falar do meu pai e do grande profissional que ele é sinto orgulho, sinto-me bem por ele. Afinal conseguiu o que ele sempre quis, uma carreira promissora. Pena que para isso tivesse perdido as duas filhas.
O facto de o meu pai não ter estado presente na minha vida, só faz com que eu sinta mais orgulho no ser humano fantástico que é o meu avô, que sempre esteve ao meu lado, sempre me apoiou e sempre fez de tudo para me ver feliz. Esse sim, o meu verdadeiro e único pai.